sábado, 13 de fevereiro de 2016


14 de fevereiro de 2016 | N° 18445 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Alegria de Carnaval

Para um sujeito de classe média branca como eu, é uma alegria ver o modo como é possível hoje brincar o carnaval na rua, mesmo numa cidade como Porto Alegre, que apesar do adjetivo que lhe enfeita o nome é uma cidade sisuda, melancólica, de vez em quando depressiva mesmo. Ao ver o modo como os blocos agora se ajuntam e se divertem (eu não os frequento, logo não tenho deles nem mesmo queixas a fazer, como ocorre com gente de bem com a vida mas justificadamente aborrecida com os excessos de ocupação de rua com barulho, na Cidade Baixa), não posso evitar a lembrança contrastiva do que ocorria nos anos da minha juventude, os 70.

Bem, não se trata de uma experiência que possa servir de modelo a quem quer que seja, naturalmente, mas representa uma modesta parte do passado da cidade, tenho certeza. Ocorre que havia basicamente duas modalidades de carnaval naquele momento: ou os clubes, para a classe média (dominantemente branca), ou o desfile em escolas, para as camadas populares (dominantemente negras). 

Naquele momento, já quase não aconteciam mais os carnavais comunitários, de bairro, relativamente espontâneos – que, lembro bem, cheguei em vão a caçar numas madrugadas, com amigos que compartilhavam o gosto pela festa, ali pela Santana, no IAPI, mas, oh a falta da internet daquele tempo, não havia informação clara de data nem de horário, e o máximo que encontramos, alguma vez, foi um resto de festa numa arquibancada pequena, já com cara de aguarde o ano que vem.

“É hoje só, amanhã não tem mais”, aliás, era um dos bordões antigos para animar a festa, para convocar o folião a mandar brasa – acabo de misturar gírias fenecidas e desparelhas, de origem diversa e até incompatível, “folião” sendo um termo carnavalesco remoto, “mandar brasa” sendo um termo mais chulo e próximo do rock, como aquele “É uma brasa, mora?” do Roberto Carlos jovem e ainda não careta.

Tive a chance histórica de me divertir muito nos bailes de clube. O meu, a Sogipa, tinha duas noites de grande movimento, o sábado e a segunda, e nós, os que tocávamos no bloco do clube, o “Em cima da hora”, aproveitávamos outras quatro noites, além das nossas – uma prévia, no Teresópolis, na sexta-feira, mais as outras duas noites do tríduo momesco (tríduo de quatro noites, não tenho responsabilidade por essa incongruência aritmética), o domingo e a terça, e mais o baile de Enterro dos Ossos, no sábado seguinte. 

O circuito abrangia, além da Sogipa, o União, o Petrópole, o Clube do Comércio, o Leopoldina Juvenil, o já citado Teresópolis e o Israelita, com acréscimo eventual de outros clubes de bairro. Era baile pra não se queixar.

No Petrópole havia mesmo um concorrido concurso de blocos de clubes. Todo baile era sempre animado por um conjunto (uma banda, como se diz hoje em dia), e no auge desse processo setentista os grandes conjuntos de baile e de pop/rock se transmutavam em conjuntos de carnaval. O baile parava e entrava o bloco concorrente. Um ano, talvez 1976, vencemos o concurso – e eu gostaria de rever aquele troféu, se ainda existir.

A propósito: onde foram parar aquelas agrupações talentosas como o Impacto, o Je Reviens, o Boogaloo, o Alma e Sangue, o Desenvolvymento, com ípsilon? Sempre me ocorre um ensaio, talvez um capítulo de minhas possíveis memórias, acerca deste tema, para mim altamente significativo: naquele tempo, o paradigma era tocar bem, de modo o mais possível fiel, o mesmo arranjo e a mesma instrumentação, com o mesmo timbre e o mesmo arranjo de vozes, a exata versão do conjunto ou do cantor original, fosse ele o Deep Purple ou o Raul Seixas, Carole King ou Rolling Stones. Ninguém ousava cantar músicas de sua autoria, com uma exceção, o Desenvolvymento, em que a band-leader, Ana Maria Masotti, era compositora.

Na geração seguinte, inverteu-se o paradigma, e todos passaram a ser protagonistas com sua própria voz, sua visão das coisas, sua tábua de valores e, talvez mais importante de tudo, sua linguagem. Não em bailes, que acabaram naquele formato. Porto Alegre só começou a falar porto-alegrês na canção na virada para os anos 80, com o Nelson Coelho de Castro, o Nei, o Bebeto Alves, e olhe lá.

(Sim, o Liverpool tinha ousadia e autoria, mas nos 70 era quase uma lenda, não mais uma realidade ativa, como foi quando eu os vi, numa sessão matinal – sim, 10 da manhã, creio – no fenecido cine Rosário. Nada da tranquilidade desses libertos anos 2000, do Carlinhos Carneiro ao cantar, despreocupadamente, “Se tu quiser que eu te leve eu aprendo a dirigir”, coisa impensável para aquele escuro tempo.



14 de fevereiro de 2016 | N° 18445 
MARTHA MEDEIROS

Almas gêmeas

Onde você enxergar o Entusiasmo, pode ter certeza de que o Pânico estará por perto

Anda difícil colocar a mão no fogo pelo amor eterno entre dois seres, então elejo aqui um casal que, este sim, raramente se separa, e quando separa, reata. Falo do Sr. Entusiasmo e do Sr. Pânico. Masculino com masculino, alguém ainda se constrange com isso?

Então avante: onde você enxergar o Entusiasmo, pode ter certeza de que o Pânico estará por perto. E quando enxergar o Pânico, saiba que o Entusiasmo estará à espreita. Um não circula sem o outro.

Vamos andar de balão? Vamos montar um cavalo selvagem? Vamos fazer um rali noturno? 

Tudo o que puder ser designado como radical leva o casal junto, entrelaçado.

E já que estamos falando em casal, pense em vocês dois. Sim, você e aquela criatura que era a última pessoa do mundo para quem você olharia duas vezes, mas olhou e quase enlouqueceu de entusiasmo pelo mundo novo que se descortinava e de pânico pelo buraco que se abria. A criatura era tudo o que você sonhava e nada do que você queria, como foi possível isso acontecer ao mesmo tempo?

Entusiasmo e Pânico.

Você está se formando? Parabéns. Compartilho a alegria por ter finalizado uma etapa importante da vida, é uma conquista memorável, hoje você e seus colegas são bacharéis, orgulhos de seus pais, hora de comemorar e de roer as unhas: haverá emprego para todos? E se a vida prática não corresponder às ilusões teóricas? Ao menos a cela especial está garantida, mas a piada é tão velha que nem o Entusiasmo e o Pânico veem mais graça nela.

Se o trabalho puder esperar, um intercâmbio revela-se uma boa ideia. Responda: não parece entusiasmante viver em outro país, morar na casa de uma família estrangeira e dar expediente na cozinha de um restaurante coreano a título de experiência? Não, responde o Pânico em seu quarto escuro às três da madrugada, com os olhos arregalados mirando o teto. Sim, responde o Entusiasmo às nove da manhã, ajudando você a preparar as malas.

Será que esses dois não se desgrudam nunca? Você se divorciou. Está livre, leve, solto e mal-intencionado: bem-vinda solidão depois de anos amarrado. O Entusiasmo brinda com os amigos no bar, enquanto o Pânico chora escondido.

Seu primeiro livro foi concluído, agora todos finalmente saberão o que se passa em seu íntimo, o talento que você tem, o talento que você não tem, a pretensão que lhe sobra, a genialidade que escondia: o que irá prevalecer?

Sem colocar o livro na rua, nunca saberá. Distribuindo-o, saberá. Duas hipóteses igualmente tentadoras e apavorantes. Prometem ser fiéis na alegria e na tristeza? Escândalo e Pânico respondem juntos que sim e trocam alianças. Só a morte os separa, só a morte, que é quando o Entusiasmo some e deixa o Pânico na mão.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016



10 de fevereiro de 2016 | N° 18441 
MARTHA MEDEIROS

Para pensar

A ONU propôs que os países latino-americanos flexibilizem suas leis sobre aborto, a fim de que mulheres grávidas com ameaça de infecção pelo zika vírus possam interromper a gestação. O Brasil nem considera a ideia, mas não se pode perder a oportunidade de voltar a debater o assunto de forma mais ampla e sem sentimentalismo – uma das razões do nosso atraso.

Vou direto às questões recorrentes.

Como tens coragem de defender o assassinato de uma criança?

Não é uma criança e não é assassinato: trata-se de interromper a formação de um embrião, a fim de respeitar os motivos de quem chegou antes, a gestante. Numa hipótese absurda, quem usa a palavra assassinato para aborto poderia usá-la também em relação à doação de órgãos. Não se estaria matando antecipadamente o doador? Afinal, também há um coração batendo, se é esse o critério. Simplista, não? (Sou doadora, que fique claro.)

Quem é contra a legalização do aborto está protegendo os direitos humanos?

Ao contrário. A lei serve apenas para punir as mulheres. Nenhuma delas levará adiante uma gestação indesejada só porque o governo, que nem a conhece, quer que ela tenha um filho. Ela abortará de qualquer jeito, como provam as estatísticas. Se tiver dinheiro, o fará em boas condições. Se for pobre, poderá adoecer, ficar infértil ou mesmo vir a óbito. Por que a vida delas valeria menos do que a de um embrião?

É preciso repressão do Estado, pois quem engravida sem querer não teve acesso a informação e prevenção.

Gravidez é fruto do desejo e do sexo. Duas coisas que não primam pela racionalidade. Mulheres inteligentes e bem-informadas também ficam grávidas sem querer. O paternalismo não procede.

Em vez de abortar, por que a mulher não doa o recém-nascido para adoção?

Seria perfeito, num mundo ideal. As que conseguem, merecem admiração. Só que a mulher que interrompe a gestação está, na verdade, rejeitando a criação de um vínculo. Se levar a gestação ao término, o vínculo acontecerá, não importa a decisão que ela tomar depois. É um assunto profundo e difícil, pois transcende a lógica. O que se está interrompendo é a formação de um amor. Duro? Duríssimo, mas a vida não é um conto de fadas.

O que você acharia se sua mãe tivesse abortado você?

O mundo não perderia nada. Ninguém dá falta do que nunca existiu. Você chora por alguém que poderia ter sido o inventor de algo chamado, sei lá, infragiro? Você lamenta o não nascimento daquela que viria a ser a melhor amiga da sua filha?

Olhe para os lados. O planeta está em crise. Dediquemos nosso afeto e solidariedade aos bilhões que chegaram até aqui e que estão precisando muito uns dos outros.