sábado, 5 de março de 2016

Reparto com os vizinhos as duas crônicas, dos cronistas que mais aprecio da ZH deste final de semana.



06 de março de 2016 | N° 18465 
MARTHA MEDEIROS

Amy


Amy foi tão longe em seu desatino que não conseguiu mais voltar

Em 2013, visitei a exposição que o irmão de Amy Winehouse organizou no Museu Judaico de Londres. Ele queria revelar quem era Amy antes de estourar como uma das vozes mais prestigiadas da soul music e de virar figurinha fácil dos tabloides por sua performance nada sublime com álcool e drogas. 

Lembro de ter saído de lá comovida com a normalidade daquela menina britânica que escutava Carole King e Dinah Washington, que curtia Snoopy, que tirava fotos com as amigas, que tinha uma caligrafia infantil. Era este o acervo da mostra: seus livros, discos, fotos, bilhetes, vídeos do colégio. Uma exposição para homenagear a primeira parte de uma vida muito parecida com a minha e a sua, mas que, apesar de ter durado tão pouco (27 anos), foi subitamente repartida em duas.

O mundo só conhece a segunda parte, a recheada de prêmios e vexames. O documentário Amy, que ganhou o Oscar no último domingo (disponível no Net Now e na Netflix), interliga ambas as fases e deixa claro que o turning point se deu com a entrada em cena de um sujeito chamado Blake.

Dizer que a paixão pode destruir uma pessoa é um clichê, mas parece que foi mesmo o caso de Amy. Ela não apenas amava o namorado: queria fundir sua vida na dele, desejava que fossem um só – e levou esse romantismo ao extremo. Repetia tudo o que ele fazia, consumia tudo o que ele consumia, chegando ao absurdo de se machucar de propósito quando ele se machucava. 

Ela queria sentir a dor dele na carne dela, uma imolação que foi um filé mignon para a imprensa. Até que ele foi preso e ela se tornou uma compositora e intérprete ainda mais fenomenal, cantando com o nervo exposto. Porém, quando Blake foi libertado, ele a esnobou, ela entrou em parafuso, e dali por diante não surtiram efeito suas várias tentativas de rehab.

É a história de uma mocinha e de um vilão? Não é tão simples. É a história de uma mocinha, do divórcio de seus pais, de uma bulimia, de um talento sem medida, de um sucesso para o qual não estava preparada e de um cara que pareceu ser uma rota de fuga para tudo isto, mas que ajudou a cavar o buraco e empurrá-la para dentro.

Nunca se sabe o que é deixado de fora na hora de se editar um documentário, mas acredito na boa intenção do diretor Asif Kapadia, que fez a artista falar por si mesma: não há depoimentos de amigos, apenas. A grande depoente é a própria Amy, que se estrutura e se desestrutura diante de nossos olhos, fazendo com que a gente desça com ela até o subsolo da sua vulnerabilidade. Difícil evitar o nó na garganta e a profunda sensação de desperdício. 

Sabemos que basta dobrar uma esquina errada para que a pessoa se desoriente e vá parar no lado oposto da história que tinha para viver. Amy foi tão longe em seu desatino que não conseguiu mais voltar. O documentário ajuda a entender como ela se perdeu – e o que nós perdemos também.



06 de março de 2016 | N° 18465 
CARPINEJAR

Não é simples se apaixonar


Paixão não é banal. Paixão não acontece com frequência. Tenho um amigo que se apaixona semanalmente. Ele está se enganando. Não é paixão, mas flerte, interesse, atração, carência, desespero para se casar.

Paixão acontece poucas vezes na vida. Devo ter me apaixonado somente seis vezes em quarenta anos.

A paixão é a nossa chance de chegar ao amor, jamais uma certeza. Pois a paixão é conquista, já o amor depende da convivência. A paixão é sempre à primeira vista, o amor vem em parcelas.

Se me apaixonei meia dúzia de vezes, amei apenas duas vezes ao longo de meus romances. De amar mesmo, a ponto de desistir de meus preconceitos e de minhas exigências e doar espaço para o tempo de alguém. A paixão é rara. De sua raridade, surgirá o amor, mais único ainda.

O que posso garantir é que a paixão é uma devastação. Não tem como não notar. Você esquece quem você era e aonde ia. Você esquece o que fazia e o que queria.

Seus contatos do celular e das redes sociais desaparecem. Nada mais interessa. É um apagão, a sua memória morre – persistem a imaginação e a fantasia.

A paixão é um blecaute da personalidade. Um redemoinho passa pela cidade de seus olhos, levando a civilização de pretendentes. Um furacão destrói a importância de seus pertences e a sua forma de se relacionar com o mundo.

Você que é cético passa a ter fé, confiar em magia, adotar hábitos de supersticioso. Você que é avarento estará disposto a filantropias improváveis. Você que é tímido é capaz de cantar num microfone em praça pública.

Você que é cafajeste torna-se fiel como uma rolha de vinho. As defesas e restrições estão postas abaixo. É um dia perfeito que interrompe o calendário, o envelhecimento, as mágoas, as cismas.

É um beijo melhor que todas as palavras que procurava antes. Não há como confundir o diagnóstico. Não existem dúvidas do encanto que se abateu.

A paixão traz uma força inacreditável. O sangue bebe energético do ar. As pernas levitam. Experimenta um superpoder: enxerga as auras além dos rostos, adivinha os pensamentos além do som, entende as piadas além do gesto.

Não precisa comer, não precisa dormir, não precisa trabalhar, não precisa arrumar a casa, não precisa atender telefone, não precisa responder mensagens.

Desfruta da imunidade do otimismo. Aguenta emendar noites e permanece disposto. Não consegue parar de transar e não reclama do cansaço. Vira um bicho do instinto. O olfato é a sua realeza.

Emagrece, mas não perde o brilho.

Adoece, mas não perde a saúde.

Com a falta de alimentação e de cuidados, qualquer pessoa ficaria desidratada e baixaria o hospital, menos o apaixonado. O apaixonado encontra a inexistência perfeita, ser cada vez menos para ser o outro.