sábado, 18 de junho de 2016


18 de junho de 2016 | N° 18559 
MARTHA MEDEIROS

Intuição



Todos têm, até os que a desconsideram. Também conhecida por sexto sentido, é algo abstrato que surge do nada e se acomoda no seu íntimo

Você não sabe explicar. Segundos antes de decidir se deve ou não se intrometer numa conversa, se deve ou não aceitar um convite, se deve ou não reagir, passa por sua cabeça um pensamento rápido que não chega a ser organizado em palavras. Antes de você considerar as opções usando a lógica, é atingido por um lampejo que prevê o desfecho antes mesmo de você analisar a situação. É como se alguém lhe assoprasse no ouvido: não vai funcionar, fique fora disso, não é pra você.

Você escuta essas frases ditas sem voz e vindas de um lugar sem nome. Como chamar essa percepção tão fugaz? Chame de intuição. Todos têm, até os que a desconsideram. Também conhecida por sexto sentido, é algo abstrato que surge do nada e se acomoda no seu íntimo, mesmo sem aplicação imediata.

A intuição não é soberana, dá suas furadas. Mas quando acerta, até assusta.

Não sou de ter muitas, não dou espaço, elas podem me deixar na defensiva, e, sinceramente, não tenho mais tempo a perder com medos infundados. Mas havia uma intuição que andava colada em mim há alguns anos. Uma intuição consistente. Eu não tinha motivo para pensar muito no assunto, ninguém me exigia um posicionamento, mas mesmo assim aquela intuição grudou em mim como se aguardasse uma convocação para qualquer momento. Eu sabia que seria difícil levá-la em consideração se a ocasião surgisse.

Surgiu. Eu precisava dar uma resposta durante um telefonema inesperado, sem chance de pedir cinco minutos para pensar. Estavam todos prontos para o meu sim. O meu sim era dado como certo. Não poderia haver outra resposta, só se eu fosse maluca. E como não sou maluca (não muito), respondi: sim.

Minha intuição ficou uma arara. Sentiu-se desprestigiada. Depois de anos me preparando para aquele momento, anos me dizendo em silêncio “não vá”, “não encare”, “não é pra você”, quando chegou a hora, não dei ouvidos a ela. Ora, se eu a obedecesse, nunca saberia o que viria depois. Ficaria me perguntando se eu não teria sido medrosa, se eu não teria sido uma boba. Por isso, disse sim, fechei os olhos e fui.

Bem feito pra mim.

Minha intuição não foi comigo assistir ao estrago, ficou em casa esperando eu retornar. Quando eu abri a porta de casa, estava ela esquentando minha cama com a sentença que eu não queria ouvir: “avisei”.

Subiu de escalão, minha intuição. Ela me conhece de um jeito que eu não me conheço. É comum a gente formular teorias a respeito de si mesmo e achar que isso basta. Só que teorias não sustentam nossas precariedades. Quando sentimos algum desamparo, vale dar mais atenção aos lampejos fugazes do que às nossas certezas pré-fabricadas.

A intuição nada mais é que um lembrete: respeite o que ainda há de inocência em você.



18 de junho de 2016 | N° 18559 
CARPINEJAR

Alma coletiva


Você pode estar julgando o outro por aquilo que você é. Você perdoa o outro por aquilo que deseja obter, a qualquer custo e não enxerga os contrastes e as diferenças gritantes das personalidades.

Você pensa pelos dois, ama pelos dois, suporta tudo pelos dois.

Acha natural que a sua felicidade será a felicidade de quem ama. Confia piamente na simbiose, na fusão, na complementaridade automática. Entretanto, os seus prazeres e sofrimentos são totalmente imaginários. Nada que crê costuma ser partilhado na prática. Na realidade, amarga um isolamento, amortizado pela ficção romântica.

Não contabiliza as provas objetivamente. Os fatos são contaminados pelas impressões e fantasias pessoais. A ânsia de agradar e a facilidade para encontrar a alegria nas pequenas coisas impedem que tenha discernimento e separe os desejos de cada um.

Você raciocina como casal, porém aquele com quem divide a vida raciocina como solteiro. Você festeja todo ato a dois, como raspar brigadeiro na panela e se agarrar debaixo das cobertas para espantar o frio, diferentemente de seu namorado, completamente imerso em seus interesses.

Jura que vem sendo correspondida porque não cogita a hipótese do ilhamento em suas vontades.

Aproveita o pouco do romance como muito (o importante é a cumplicidade), já quem você namora somente enxerga como esmola (o importante é não ser incomodado).

Compra orquídeas para embelezar a mesa da sala – o espaço precisava mesmo de flor – e a companhia só acredita que gastou dinheiro à toa. Convida ao cinema sob o pretexto divertido de disputar as mãos no saco de pipoca e a companhia só queria ficar no sofá mexendo nas redes sociais. 

Organiza um almoço familiar, cozinha e prepara uma torta com paciência de uma manhã inteira, e a companhia só queria beber com os amigos e ouvir pagode.

Prepara um final de semana idílico na serra, com hospedagem paga e banheira de hidromassagem, e a companhia só queria dormir até o meio-dia.

Em nenhum momento, duvida de que alguém pode não gostar de amar. Mas casar é vocação para pouquíssimos de alma coletiva. É trocar o egoísmo pela gentileza, é renunciar o conforto pela generosidade. É nascer a dois, no ventre do coração, independentemente do que diz a certidão de nascimento.


18 de junho de 2016 | N° 18559
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

SENSIBILIDADE INTUITIVA


As relações humanas devem ter um componente de afeto, ou pelo menos se espera que tenham. Claro que a interpelação de um agente penitenciário não pode se equiparar à abordagem de uma assistente social, mas abstraídas as circunstâncias extremadas, as interações de pessoas civilizadas precisam ser ungidas de algum grau de empatia.

Em algumas situações, e a relação médico/paciente é o modelo de exigência neste quesito, há necessidade premente de solenidade. Não se pode esperar prosperidade afetiva de uma relação que foi banalizada no primeiro contato pelo atropelo de uma das partes.

Tenho insistido com isso nas conversas com estudantes e residentes: preparem-se para essa aproximação com o reconhecimento que, na ponta mais vulnerável da conexão, está uma criatura fragilizada pelo sofrimento e com todos os sensores ligados. Por consequência, não pretendam resgatar uma relação que tenha começado mal.

Numa noite dessas, fiz uma conferência sobre A Humanização que Qualifica em um grande colégio e discorri sobre a necessidade que o médico tem de dimensionar com inteligência o conflito de sentimentos que envolve de um lado um profissional cumprindo a sua rotina (e a rotina, como aprendemos, é corrosiva das relações afetivas), e do outro, um paciente assustado com a percepção da sua própria finitude. No final da conferência, fui abordado por dois jovens, na idade da indefinição, aquele tempo que cursa entre o fim da puberdade e a vida pra valer. Havia naquelas caras, limpas e ingênuas, a grande curiosidade de quem está consumido pela ânsia de ser muito, e ainda não ter ideia do quê.

Fiquei encantado com a inteligência e a objetividade da dupla e saí com a certeza de que, quando se decidirem, não importa o que for, serão.

Dias depois, recebi um e-mail da mãe de um deles relatando o impacto que a conferência causara no filho, e contando uma história reveladora: ele aprendera instintivamente a importância da solenidade nas relações humanas, sem que ninguém lhe ensinasse. Com três anos e sete meses, sua pediatra lhe solicitara uma ecografia abdominal. Estava ele deitado, com a barriga exposta, na semiescuridão da sala de exame, à espera do médico, e vigiado à distância pela mãe. 

De repente, entra o doutor, de olho fixo no monitor e, sem dizer palavra, coloca o gel sobre a pele do abdome e começa o exame. Passado um minuto, ele resolveu participar do evento, porque afinal era o dono não só da barriga, mas também das porções que estavam acima e abaixo da área do exame: “Olá, eu sou o Artur!” E então, por iniciativa de uma criança desconfortada com a solidão, a indispensável interação humana, finalmente, entrou em marcha.

Agora, que já incluí o Artur no rol das minhas histórias, fiquei com vontade de requisitá-lo para uma monitoria na faculdade de Medicina.

Os intuitivos, como se sabe, são os melhores didatas.