sábado, 23 de julho de 2016



23 de julho de 2016 | N° 18589 
MARTHA MEDEIROS

O que fazer da vida

“O que você vai fazer da sua vida?” é, antes de uma pergunta, um julgamento sumário, uma crítica

Não tinha nem 10 anos de idade e era invadida por uma excitação boa a cada vez que alguém me perguntava o que eu queria ser quando crescesse. Yeah! Estava confirmado que eu iria mesmo crescer, não era apenas uma hipótese fantasiosa. Eu então respondia: quero ser aeromoça! Se me acusassem de estar com a cabeça nas nuvens, eu aterrissava: então quero ser chacrete! Não importava se o desejo se cumpriria, eu simplesmente idealizava um futuro associado a coisas de que eu gostava, logo, me imaginava cantora, guitarrista (passava os dias ouvindo Suzi Quatro), balconista de supermercado (nas brincadeiras, sempre escolhia atender no caixa), tenista (o esporte da família), psicóloga.

Mentira, eu nem sabia o que fazia uma psicóloga. Só tinha certeza de que jamais seria médica de nenê. Queria me livrar do universo infantil e entrar logo no mundo adulto, que me parecia muito mais divertido.

Até o dia que tive que encarar o vestibular sem ter a mínima ideia de qual curso escolher. Acabei optando pela Publicidade porque uma amiga iria fazer também. Já que eu gostava muito de arte, de criatividade, de escrever, quem sabe não dava pé? Deu. E ninguém mais perguntou o que eu queria ser quando crescesse porque, afinal, eu havia crescido. E crescia junto a minha angústia, pois agora a pergunta era diferente: o que você vai fazer da sua vida?

Esta é uma questão que não abre os portais da imaginação, não induz ao sonho, ao contrário, procura nos enquadrar em algo que ofereça um firme suporte existencial. “O que você vai fazer da sua vida?” é, antes de uma pergunta, um julgamento sumário, uma crítica: o que você vai fazer da sua vida além de ficar perambulando pelas noites de sábado, além de programar feriados em Garopaba, além de namorar, além de fazer estágio não remunerado, além de juntar dólares para viajar, além de passar as tardes trancafiada no quarto ouvindo música, além de ficar com a cara enterrada em livros de poesia? 

Nada disso significava fazer alguma coisa da vida, ao menos não da vida que os outros esperavam que você tivesse, e você também esperaria, se soubesse lidar com assunto tão complexo. Não sabendo, tocou em frente, porque quem aguarda uma resposta absoluta não faz nada.

Então você trabalhou, casou, teve filhos, trabalhou, separou, casou de novo, trabalhou, viajou, voltou, trabalhou, envelheceu, trabalhou, viajou, voltou, trabalhou e o final ainda está em aberto.

O que você faz da sua vida? A mesma coisa que todos, provavelmente. Ocupa o tempo enquanto ainda se diverte sonhando com o que quer ser quando crescer.



23 de julho de 2016 | N° 18589 
CARPINEJAR

Cadê a coxinha?

Passei na lancheria da escola para matar a saudade dos pecados de infância. Iria pedir um enroladinho. Já salivava ao imaginar a mordida na massinha. Aproveitaria os minutos antes de minha palestra em colégio na Capital para engordar e ressuscitar os sabores da meninice.

O barzinho parecia idêntico ao de minha época de estudante, com jeitão de trailer e a tampa da janela levantada. Mas não tinha enroladinho, este irmão menor do cachorro-quente.

O tio – todos os atendentes sempre serão tios para mim, não importa a minha idade – demorou a entender o que era enroladinho. Procurando me contentar, ofereceu um hossomaki. Juro que a minha audição tossiu de volta as palavras. Não esperava Tóquio em Porto Alegre, tanto que conferi o logotipo dos uniformes ao redor para me certificar de que não se tratava de um pesadelo.

– O quê?  – Sim, é o que mais sai no recreio – ele explicou. – Tá brincando, né?

– Não, os alunos têm preferência pelos rolinhos finos, quer experimentar? Ainda oferecemos temaki, kappamaki, tekkamaki e uramaki.

Não desejava comida japonesa às 10h da manhã. Qual o destino dos lanches perigosos e gordurosos das escolas? O que aconteceu com o rissoles? Onde foi parar o folhado? Cadê a irresistível coxinha?

Suava frio com o excesso de saúde na infância. Os dedos ágeis e aflitos no guardanapo terminaram trocados por pauzinhos? A mostarda e o catchup perderam sua realeza para o shoyu e o wasabi?

Ninguém mais mastigava pastelina com guaraná? Agora era suco verde e tapioca?

Que medo dessas turmas nutri, que desconhecem o poderio doce das balas Xaxá e 7 Belo. Será que os alunos pedem bolo integral de banana em vez de nega maluca?

Que receio dessa geração fitness que não experimenta o proibido, que come no lanche o mesmo que come no almoço e na janta e que não separa o mundo doméstico da casa do selvagem universo escolar.

Só o que faltava não mentir aos pais. Para a família, eu não relatava os feitos gastronômicos. Preservava a privacidade da gula. Fingia que adorava a merenda, um sanduíche insosso de ricota, e devorava um largo e maravilhoso pastel de carne, com o caroço do ovo saltando na pele dourada.

Amadureci porque sempre cultivei os meus segredos.

sábado, 2 de julho de 2016



02 de julho de 2016 | N° 18571 
MARTHA MEDEIROS

Mulheres e palavras surradas


Estar consigo mesma é companhia suficiente. Uma mulher sem homem tem mais valor do que uma mulher com um homem babaca, covarde, pequeno

Estamos em plena revolução feminista parte 2. Depois de inúmeras conquistas resultantes do surgimento da pílula anticoncepcional e da nossa entrada no mercado de trabalho, pausamos, recarregamos as baterias e agora voltamos à luta, rebatizada de empoderamento e direcionada, principalmente, à violência contra a mulher.

Acho empoderamento uma palavrinha detestável: é por causa da atração pelo poder que o Brasil está metido em encrenca e vive no atraso. Poder é um verbete obsoleto no meu dicionário. Troco empoderamento por conscientização e autoestima – autoestima também não é das melhores palavras, tornou-se um clichê, mas é do que precisamos.

Por que as mulheres são agredidas? Porque se envolvem com homens brutos, ignorantes, machistas: resposta simples. A resposta complexa vai um pouco além. Violência não deixa de ser um contato. O homem que bate no seu rosto, que queima seu braço, que chuta sua barriga e que puxa seu cabelo está enxergando você, está interagindo – da maneira mais cruel, mas está. Eis o perigo: a violência cria a ilusão de vínculo.

Para algumas, a indiferença pode ser muito mais atroz.

Por que ela não cai fora no primeiro tapa? Mulheres seguras não levam adiante uma relação agressiva, suspendem o ultimate fighting assim que ele começa e partem para outra história que seja realmente de amor, e não de carência, de dominação, de submissão. O primeiro tapa tem que ser sempre o último. Mas não é o que acontece: ele gera o segundo. Que gera o terceiro. Que gera todos os outros até a situação ficar insustentável. Decorre um longo tempo até chegar ao ponto do “não aguento mais”. Por que se aguentou tanto antes?

Dependemos do olhar do outro. Queremos ser admiradas, amadas, desejadas. Mas isso não deve valer para o olhar perverso que nos vê como um objeto onde descarregar frustrações. O cara não se suporta e desconta em você – é justo isso? E você segura a onda porque acha que o empurrão dele também é uma espécie de toque. Ele, através da pancadaria, está se relacionando com seu corpo e reconhecendo sua existência. A ausência do olhar dele – e do ataque dele – a transformaria em nada.

É por isso que aquela palavrinha surrada (ela também) tem que ser reforçada: autoestima. Não precisamos temer a solidão. Estar consigo mesma é companhia suficiente. Uma mulher sem homem tem mais valor do que uma mulher com um homem babaca, covarde, pequeno. Nenhuma intimidação é romântica. Sofrimentos emocionais são inevitáveis, mas ter o corpo submetido à violência física não dá poema, não dá filme, não dá nenhuma canção bonita. Tem que dar cadeia, apenas isso.

A grande revolução feminista passa pela consciência de que a solidão não é humilhante, a renúncia à nossa integridade é que é.



02 de julho de 2016 | N° 18571 
CARPINEJAR

A rapidez insuportável na mesa


Não há motivos para ser um esfomeado. Mas põe um prato na minha frente que devoro em 10 minutos. Tenho uma rapidez de britadeira.

Quando estou num almoço de aniversário, eu fico perdido. Termino rapidamente a refeição enquanto os outros ainda estão começando. Surge o tédio, sou obrigado a me fixar no silêncio e na paciência e esperar o momento da sobremesa para reaver o valor da presença.

A passionalidade é resultado da mesa cheia da família. Disputava a comida com três irmãos. Não havia fartura, a mãe cozinhava exatamente o que precisávamos – nem mais, nem menos. Eu cortava o bife de olho no segundo bife, eu sugava a massa de olho na macarronada da bandeja, o meu radar estava sempre ciscando o andamento das vasilhas e controlando o desempenho dos manos. 

Eu não comia, ganhava ou perdia corrida. Meu principal adversário era o Rodrigo, que sempre se adiantava para repetir. Quantas vezes colocamos o garfo juntos no mesmo bolinho derradeiro? E a mãe vinha com a democracia do empate e pedia para repartirmos. Ambos baixávamos a cabeça constrangidos pelo egoísmo.

O terror gastronômico alcançava o seu pico com tortas e doces. Aquele que acumulava mais fatias se vangloriava a tarde inteira e flauteava os concorrentes. Eu não disfarçava a raiva de ser passado para trás, puxava briga e armava confusões.

Até hoje guardo o hábito de colocar o brigadeiro inteiro na boca para ganhar tempo e pegar o próximo. Não queira me encontrar em festa de criança. Nunca conheci as etapas do apetite, as preliminares, o antepasto, sou um ogro da voracidade. Menu degustação jamais funcionou comigo.

Grita a diferença de postura em relação à minha mulher. Beatriz come devagar, quase parando, saboreando, sem pressa alguma. Não sofre com o que é servido, não acha que está sendo injustiçada, não pretende se sentir favorecida mesmo quando está diante de uma lasanha ou uma iguaria predileta, não salta desesperada para as bandejas enquanto ainda não finalizou a primeira porção.

Eu sou uma partida de squash, ela é um jogo de golfe.

A lentidão vem porque ela é filha única. Não tem medo de faltar comida. Eu vivia sob o receio da panela vazia a qualquer momento. Não restaria esperança imediata de forrar o bucho, conquistaria uma nova chance somente no jantar.

Quem é filho único é adepto do slow food. Mastiga com calma, reverencia a fumaça do alimento, conversa alegremente, usa os talheres com elegância.

Quem é filho único jamais dirá que comeu demais ou comeu de menos.