sábado, 30 de maio de 2020



30 DE MAIO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Boletim de ocorrência

22 de maio de 2020, 17h06min. Estava desde o início da manhã em frente ao computador tentando escrever um novo texto, mas não conseguia digitar uma única palavra. Alegar falta de assunto, impossível. Não dá para dizer que o mundo anda um tédio, tudo indica que o apocalipse se avizinha, e os terrores são sortidos, basta conferir os sites de notícias, jornais, telejornais. Então o que estaria acontecendo que eu não conseguia me manifestar sobre nada? Foi quando me dei conta de que havia sido vítima de estelionato: a inspiração foi apenas a primeira falta que percebi, mas o butim era bem maior.

Levaram também minha inocência. Fico envergonhada de admitir, mas eu ainda tinha alguma. Não dá para se entregar às evidências o tempo inteiro, a gente acaba ficando cínica em relação à vida. Eu tinha um restinho de inocência no bolso, para alguma emergência. Ela me fazia pensar: vá que não sejam tão dementes, vá que prestem para alguma coisa. Naquela tarde, vi que meu bolso estava vazio.

Além da inspiração e da inocência, passaram a mão no meu discernimento. Já não sei o que é bom ou ruim pra mim. Cheguei a fantasiar uma ruptura. Abandonar as redes sociais, vender meu apartamento e meu carro, desistir de ser colunista, me mudar para um local distante e viver para a leitura, as caminhadas e as visitas dos amigos. Aí concluí: seria uma involução. Sei que já não sou garota, mas desistir desse jeito? 

Ainda há projetos a realizar e é importante me manter ativa na profissão que escolhi. No segundo seguinte, concluí o oposto: seria uma evolução. Cultivar a paz de espírito longe do caos urbano, se distanciar da toxidez da política, me alimentar melhor, ouvir música, falar menos: é preciso ficar velha pra isso? Continuo sem resposta.

Eis a razão deste B.O. que discrimina minhas perdas. Não sei bem a quem acusar. O capitalismo? O fascismo? O comunismo?

Gostaria que um inquérito fosse aberto e, se possível, reaver o que me foi tirado. Não é pouco. Eu vivia melhor. Eu era mais alegre. Reconhecia os problemas do Brasil, mas ainda gostava de morar aqui. E também achava que seria feliz morando em certas cidades do mundo. Agora nenhum lugar me parece ideal - a não ser a tal casa isolada em algum ponto distante: fantasias resistem a qualquer vírus.

A idiotice e a ignorância assumiram a chefia e ninguém parece interessado em me ressarcir da ausência de algo belo em que continuar acreditando. Meus olhos estão secando com a luz azul dos celulares. As pessoas andam desiludidas e com medo de apertarem-se as mãos. Os teatros estão vazios. E ninguém mais conversa sobre o amor. Faltava mais nada, roubarem também meu romantismo.

MARTHA MEDEIROS



30 DE MAIO DE 2020
LYA LUFT

Esperanças

(Aqui respondo ao pedido especial de alguém que ainda não conseguiu meu livro As Coisas Humanas, que aguarda livrarias abertas, portanto sendo comprado online.)

Não vou falar de cidade, Estado, continente, nem mesmo planeta.

Pois esses, eu sei, são terra de seus habitantes, por sorte e azar deles. Falo desta terra interior, e da vida, que pouco se controla. Que nos surpreende tão lindamente às vezes, e em outras com uma patada mortal, o trator existencial passando por cima da gente - e fim de uma alegria, uma felicidade, uma luz, uma pessoa amada. (Ou uma trágica pandemia destruindo boa parte do mundo que conhecíamos.)

Mas gosto de pensar neles, de curtir esses presentes positivos que o destino nos traz. Como quando abro a janela e diante de mim, um luxo que não me pertence e que só curto do meu apartamento: um parque bem cuidado com vários jacarandás. Em outras épocas, paineiras em flor parecem um sorvete de morango se derramando sobre as outras árvores mais baixas (sim, gulosa desde criança).Ou alguém me diz, inesperadamente, encantadoramente: "Tu és uma vó muito divertida!", e isso me ilumina um dia inteiro. Ou cai da agenda um poema que alguém me escreveu há décadas, e ainda vale. Valeu mesmo que essa pessoa tenha sumido, morrido, ou esteja logo ali e tenha esquecido o poema.

Ou num aeroporto estrangeiro, uma brasileira toque meu ombro para perguntar se eu sou eu, sorrir, abraçar e dizer uma porção de coisas boas sobre meus livros. Espantando assim meu desconforto com aviões e aeroportos. Fazendo eu me sentir em casa, mesmo quase do outro lado do mundo.

Mas não somos terra de ninguém na medida em que coisas boas nos habitam: projetos ou sonhos, realizações ou desejos, pessoas, memórias, experiências inesquecíveis, livros, filmes, não faz mal. Somos terra povoada por muita coisa: que seja boa, que seja bela, que nos ajude.

Pois viver pode ser interessante, instigante, mas em algumas fases cansa, e como. Cansa abrir os olhos interiores antes de descerrar as pálpebras e dar-se conta: mais um dia. Ter um artigo para escrever, contas a pagar (até isso é a vida!) e livros para ler, muitos e bons. E a casinha da serra nos esperando, com flores, bugios, singulares borboletas de um azul muito pálido e vizinhas e amigas -, e quando quero, quietude maravilhosa olhando as árvores, que digo minhas porque a vida me presenteou com elas e acho que me protegem.

Enfim, o jeito é bancar o guerreiro e não entregar os pontos, pensando que não há só desgraça e discórdia, e quem sabe vamos todos nos abraçar, e rir, e relevar todos os mal-entendidos e brigas que, acreditem, não valem a pena. (Grande ilusão da minha infância.)

Pois o bom é poder ser território de amores, amizades, desejos, trabalhos, conquistas e mesmo fracassos, mas estando aqui, estando vivos - ah, e, apesar de tudo, curtindo as esperanças.

LYA LUFT

domingo, 10 de maio de 2020