sábado, 29 de junho de 2024


29 DE JUNHO DE 2024
J.J. CAMARGO

Quando a crise foi sanitária, a distribuição do sofrimento, ainda que mais equânime na origem, logo adiante restabeleceu o desequilíbrio, quando a boa condição econômica dos privilegiados permitiu socorro hospitalar em unidades de terapia intensiva mais sofisticadas, onde as mortes evitáveis puderam ser evitadas.

Mas como o tema da desigualdade se presta para todo tipo de discurso, seja ele solidário, assertivo, hipócrita ou demagógico, vamos tratar de depurá-lo, eliminando o viés político, com o objetivo primordial de isenção.

No intuito de entender um pouco mais as razões do acontecido, surpreende a abundância do inexplicável, pois quase nada se encaixa quando se evocam as causas da catástrofe climática. E que foram, segundo os entendidos, terrivelmente negligenciadas, apesar de facilmente identificados pelos profetas do acontecido como fatores predisponentes. 

Claro que ninguém se deu ao trabalho de explicar por que um fenômeno idêntico ocorreu em 1941, quando nenhum dos tais agentes causais estava presente e a natureza ainda não tinha os ranços atuais de vingança. Naquele tempo em que a gente, com a inocência desprotegida, até considerava o ruído da chuva como um doce entorpecente dos céus.

A esperança fantasiada

Treinado a cuidar de pessoas que sofrem, me limito a tentar entender de onde elas tiram tanta submissão. Persistem batalhando pela sobrevivência, mesmo depois de ter perdido a casa em setembro do ano passado, buscado força para reconstruir e mobiliar, e neste maio que não precisava ter existido ver outra vez tudo ser arrastado pela correnteza, levando de roldão tudo o que tinha comprado em prestações que terão que ser pagas duas vezes para continuar não tendo um cantinho para onde voltar. 

E ainda encontram motivação para acordar pela manhã na casa emprestada do familiar e sair para o trabalho, com a esperança, fantasiada de certeza, de que as coisas finalmente irão melhorar. _

J.J. CAMARGO

29 DE JUNHO DE 2024
DRAUZIO VARELLA

Embora ignorante em assuntos da economia, sei que equilibrar as contas do governo é muito importante. O problema é que reduzir o orçamento do Ministério da Saúde sem definir as áreas que vão sofrer cortes é irresponsabilidade.

Os sanitaristas e todos os que se interessam por saúde pública são unânimes em reconhecer que o SUS padece de subfinanciamento crônico. Investimos em saúde 9,8% do PIB, número compatível com aqueles dos países da OCDE. No caso deles, no entanto, o sistema público recebe 70% a 80% do investimento total, enquanto aqui a parcela é de apenas 40%. Os 60% restantes ficam por conta das famílias: pagamento de convênio, consultas particulares e medicamentos, entre outros. Quer dizer, os 150 milhões de brasileiros mais pobres que dependem exclusivamente do SUS têm acesso a menos da metade dos recursos. Nesse quesito, perdemos também para o Chile e a Colômbia.

Para cada U$ 1 investido pelo governo, as famílias brasileiras desembolsam U$ 1,13. Em Portugal a relação é de 1 para 0,58, no Reino Unido, 1 para 0,20.

Embora haja espaço para melhorar a gestão, combater o desperdício e a corrupção, é claro que o SUS não conseguirá lidar com novas perdas orçamentárias sem interromper serviços que presta aos mais desfavorecidos. Por essa razão, os digníssimos representantes do povo na Câmara e no Senado que propõem reduzir o orçamento do Ministério da Saúde têm o dever moral de assumir a responsabilidade de declarar quais serviços o SUS será obrigado a cortar. Suponho que os senhores conheçam os principais programas do nosso sistema de saúde.

Temos o maior programa público de imunizações do mundo, o PNI. Qual das vacinas devemos suspender: sarampo, difteria, tétano, covid, poliomielite?

A incorporação ao PNI das vacinas contra o vírus sincicial respiratório que tantas internações e mortes provoca em crianças e adultos, a vacina trivalente contra influenza, contra o vírus Chikungunya e o meningococo tipo B vai nos custar cerca de R$ 3 bilhões.

Podemos economizar esse dinheiro, claro, mas quanto gastaremos com as internações hospitalares para tratamento das complicações pulmonares do sarampo, da gripe, do vírus sincicial e com as afecções reumatológicas provocadas pelo vírus Chikungunya? Quanto sofrerão os que caírem doentes por falta de vacina? Esquecemos das mortes que ocorreram antes da vacinação contra a covid?

Vamos reduzir o número de médicos, enfermeiras e de agentes comunitários que batem de porta em porta para levar cuidados de saúde a cerca de 160 milhões de brasileiros? Reconhecido pela OMS, como um dos maiores programas de saúde pública do mundo, o Estratégia de Saúde da Família nos custa R$ 20,6 bilhões por ano. Economizar essa quantia não será um tiro no pé? Quanto custarão as internações por problemas que poderiam ser resolvidos pela atenção primária, a baixo custo?

Onde mais poderíamos economizar? No programa de distribuição de medicamentos contra o HIV, que revolucionou o combate à epidemia no Brasil? Nas equipes do Resgate, que prestam atendimento às emergências nas cidades brasileiras? Suspender o Programa Brasil Sorridente, que acaba de ser retomado a um custo anual de R$ 10,7 bilhões? 

Vamos preservar dentes íntegros só na boca dos que têm dinheiro para ir ao dentista? Dar fim ao Farmácia Popular e deixar pessoas com diabetes e pressão alta correr risco de ataque cardíaco, AVC, insuficiência renal e cegueira? Acabar com o Mais Médicos e abandonar à própria sorte milhões de brasileiros dos rincões mais distantes?

Por acaso, os senhores que pretendem cortar recursos do Ministério da Saúde lembram que o SUS é o maior programa de distribuição de renda do país, diante do qual o Bolsa Família não passa de uma pequena ajuda?

Diminuir os recursos do sistema único significa aumentar a concentração de renda que envergonha todos nós. Como disse Eugenio Vilaça Mendes, um dos sanitaristas que mais conhece o SUS: "A sociedade ainda não fez a opção definitiva sobre o nosso modelo de assistência à saúde. Dessa opção depende estabelecer o quanto estamos dispostos a pagar por ele". _

DRAUZIO VARELLA