sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Menos virtual, mais real

Um novo ano se inicia e com ele novas esperanças, projetos e resoluções. A mudança de ano nos traz desejos de que certas coisas mudem, transforme-se ou finalizem. Se fosse para desejar algo, neste ano, pediria menos virtualidade e mais realidade.

​​A cada ano, afastamo-nos mais e mais de nossas relações interpessoais no plano real. Novos amigos são conquistados, negócios realizados e visitas são feitas, contudo em boa parte, acontecem no mundo virtual.



Nos arriscamos cada vez menos. Lidamos com relacionamentos, fechados dentro de uma redoma segura, dispostos a conhecer superficialmente e só o que o outro nos apresenta. Na primeira divergência somos tomados por um sentimento de repulsa de quem cometeu um crime contra o nosso protegido status e, com a facilidade de um click, expulsamos o outro temporariamente ou para sempre. Muitas vezes por termos interpretado mal... era uma sátira e entendemos como uma opinião sincera. O problema estava na falta do contato visual, da leitura das expressões faciais e da interação em tempo real.

Regredimos em nossos relacionamentos. Antes, se precisávamos falar sobre algo, dirigíamos até o outro e se expunha nossos sentimentos e pensamentos.
Escutávamos as opiniões contrárias, os argumentos e interagíamos para minimizarmos as dúvidas. Desta maneira, construíamos inter-relacionamentos fortes baseado nas afinidades e respeitando-se as divergências. Se a distância não permitia em determinado momento, escrevíamos cartas e telefonávamos. Hoje, mandamos textos por e-mail (caso for relativamente mais longo ou existe a necessidade documental) escrevemos sentenças, enviamos “emojis”, gravamos áudios, postamos fotos e, talvez lembremos que seria mais rápido e mais produtivo se tivéssemos feito através de uma ligação telefônica.

Perdemos vários tipos de percepções importantes para o conhecimento um do outro. Vivemos na superficialidade dos sentimentos e ainda, adequamos nossa personalidade de acordo com o grupo em que hora nos relacionamos. A real personalidade está sendo transformada por multiversos intelectuais que não representam o nosso ser natural. Mudamos nossa personalidade para sermos aceitos em vários grupos distintos. A cada acesso a um grupo específico, readequamos nossa personalidade e nos comportando de acordo com aquele grupo para a perfeita sintonia. Em caso de divergências, o botão de excluir está ali, pronto para apagar a existência como um simples disparo de um míssil balístico.

Outro perigo a nossa existência legítima é o fato de que, quando estamos neste universo virtual, não possuímos limites. Quem tem filhos aficionados em jogos, sabem bem sobre o que estou falando. Para se ter uma ideia, existem jogos onde você pode atuar como, policial, ladrão, assassino e até estuprador. Tudo de forma legal e impessoal, alimentando a agressividade dos nossos sentimentos mais perversos, os quais normalmente, são reprimidos e controlados por um sistema eficiente: o amor e compreensão para com o seu semelhante no contato diário. O velho e bom ditado “não faça aos outros o que não quer que façam a você” não se aplica a jogos como GTA, Postal 2 ou Manhunt. Este último, proibido em muitos países.

Tire este controle e veja o quão rapidamente muitos se transformam.

A artista Marina Abramovic sofreu com um experimento para gerar um novo ensaio fotográfico em 1974, na Itália. Durante seis horas ela propôs ficar imóvel, não mais como um ser humano, mas como um objeto e, dispôs ao público 72 objetos aos quais, poderiam interagir sem qualquer limite. No início, penduravam alguma coisa em suas roupas ou realizavam carícias. Num determinado momento, perdeu-se o controle. 

O público, com a certeza da impunidade devido a declaração de auto responsabilidade da artista, começaram a maltrata-la, colocando correntes, despindo-a e até cortando sua pele com uma gilete. Este trabalho artístico provou a rapidez com que a violência contra os outros se intensifica quando as circunstâncias são favoráveis para os seus praticantes. Ao final do tempo, ela caminhou, seminua entre o público que evitava olhar diretamente para ela e agiam naturalmente como se aquilo não houvesse ocorrido.

Alexander Bard, economista e estudioso sueco da atualidade colocou muito bem em sua proposta da evolução humana: entramos na era da internet e caminhamos para nos transformar em seres psicopatas. Afinal, devido a nossa virtualidade, estendemos nossos limites sociais, adquirimos múltiplas personalidades, buscando o entrosamento, a satisfação de nossos desejos ou até a felicidade em um universo virtual dinâmico, porém precário, inconsistente e muito perigoso!

Mauro Nadruz: Gestor em Estratégia da Segurança da Activeguard, analista e professor

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